A Falácia da "Mini-Era do Gelo"

Na semana que passou a imprensa brasileira foi contagiada por uma notícia surpreendente: estaríamos próximos a ingressar numa "mini-era do gelo". "Preparem seus casacos" e "o inverno está chegando", diziam as chamadas mais sensacionalistas, em meio a imagens de nevascas.

Neste texto, vamos mostrar qual a verdadeira ciência por trás desse propalado "mínimo de atividade solar" e seus possíveis impactos, de onde veio essa "informação" (e como estudos científicos legítimos podem findar completamente ignorados, alguns, e distorcidos, outros, pela imprensa marrom) e qual o seu contexto (porque a indústria fóssil precisava imediata e desesperadamente de um factóide como esse nestes últimos dias). E contamos, claro, com a ajuda dos/as leitores/as do nosso blog para difundir um posicionamento científico realmente embasado sobre o tema! Vamos lá?

De onde veio a fraude?

Os órgãos de comunicação brasileiros reproduziram uma falsa notícia plantada primeiro na mídia britânica (como neste teatro do absurdo publicado pelo jornaleco de quinta categoria "Daily Mail"). Desinformaram, confundiram a opinião pública e atestaram vergonhosamente ou a incompetência de suas equipes de jornalismo ou o seu compromisso com o negacionismo mais tosco (padrão tablóide) que continua sendo financiado pelas corporações da indústria fóssil. Mesmo as editorias de ciência não procuraram especialistas para opinar, esclarecer, etc. Tudo feito a toque de caixa, com Control-C, Control-V, mas provavelmente com a consciência de que seria uma matéria para chamar a atenção pelo sensacionalismo, vender exemplares de jornais e revistas, conquistar "likes" e "shares".

Vamos à cronologia. Aparentemente, há 9 dias, o boato primeiro apareceu no Daily Mail, considerado o mais reacionário veículo de mídia impressa de massas do Reino Unido, repercutido imediatamente pelo Telegraph e pelo Independent. No Reino Unido, somente um veículo mostrou-se sério: The Guardian, que abordou de forma sóbria o assunto e foi o único - vejam só - a reproduzir palavras de uma cientista que havia publicado um artigo na revista Nature sobre o tema. Sarah Ineson, por sinal, foi taxativa: “Mesmo que entremos em condições como a do Mínimo de Maunder, isso não vai combater o aquecimento global. O sol não irá nos salvar". Em artigos publicados nos dias seguintes, o Guardian reforçou o seu correto combate ao negacionismo dos concorrentes.

Mas... poucos dias depois, a "notícia" chega ao Brasil. Reproduzida pelo GloboPortal Terra e outros, espalhou-se como rastilho de pólvora.

Sites e revistas que se propõem a ser de "divulgação científica", como Galileu, caíram vergonhosamente na esparrela sensacionalista (intencionalmente ou não) e, no caso desta última, apesar de ter incluído uma "atualização" dizendo que "alguns leitores nos lembraram que os acontecimentos são independentes do aquecimento global causado pela atividade humana" e que "não significa que devemos esquecer das responsabilidades ambientais ao esperar um resfriamento por conta do Sol", tanto o estrago já havia sido feito, quanto o reparo ficou inteiramente aquém do necessário.

Nesse contexo, alguns dias depois da bomba ser lançada, o site de meteorologia Climatempo foi o único a procurar um especialista em clima para abordar o assunto e, ainda assim, teve uma abordagem ao meu ver muito insuficiente (a própria declaração em vídeo do meu colega Tércio Ambrizzi contém limitações e até erros significativos, como quando ele afirma que "não há como saber" que processo dominará, afinal, como mostraremos a seguir, há vários estudos nesse sentido, que mostram claramente qual o processo dominante).

Resumo da ópera até aqui? Sensacionalismo barato da imprensa, negacionismo rasteiro, emendas mal-feitas por parte dos que admitiram estar difundindo desinformação e contraposições tímidas e/ou incompletas da parte de quem poderia ter esclarecido melhor a confusão e condenado enfaticamente a irresponsabilidade e/ou má fé dos que disseminaram informações tão gritantemente falsas. A sensação que me deu foi "o que tem de errado com vocês?".

Que tal ir na origem?

Antes de ganhar (de forma irresponsavelmente distorcida) a mídia, tudo aparentemente começou com um anúncio no mínimo descuidado de um evento da Royal Astronomical Society no dia 09. O mesmo falava das previsões de "um novo modelo do ciclo solar", cujos resultados sugeriam que "a atividade solar cairia em cerca de 60% durante os anos 2030 até condições vistas pela última vez durante a 'pequena era do gelo' que se iniciou em 1645". A apresentação desses resultados, ainda não publicados na forma de artigo, foi feita pela Professora Valentina Zharkova, ligada à Northumbria University.

O trabalho pode ser interessante e me parece bastante possível que tenha mérito acadêmico (claro, gosto de esperar o processo de revisão por pares, pois ainda que bastante imperfeito, o "peer-review" ainda é a melhor maneira de corrigir erros secundários e garantir melhorias a trabalhos científicos, bem como filtrar trabalhos que contenham erros fundamentais ou que, no limite, sejam fraudulentos). Zharkova explica que a ideia é prever a atividade solar a partir do "batimento" entre duas oscilações de frequências semelhantes (ambas com períodos próximos a 11 anos): "quando elas estão aproximadamente em fase, mostram forte interação ou ressonância e temos forte atividade solar. Quando estão fora de fase, temos mínimos solares. Quando a separação de fase é completa, temos as condições vistas, pela última vez, durante o mínimo de Maunder, há 370 anos".

Mas Zharkova pareceu sinceramente surpresa com o furdunço em torno da divulgação do seu trabalho. Em entrevista ao USA today ela revela que "a pesquisa nunca falou de era do gelo", que "na coletiva de divulgação para a imprensa, não falamos nada sobre mudanças climáticas" e que "meu palpite é que quando ouviram algo sobre o Mínimo de Maunder, usaram a Wikipedia ou outra ferramenta para descobrir mais alguma coisa". Ao falar para o site IFLS ("I f*cking love science", algo como "Eu amo ciência pra p*rra"), Zharkova parece demonstrar que não tem efetivamente conhecimento sobre clima, pois claramente exagera os potenciais impactos do que pode acontecer se suas previsões sobre o Sol se confirmarem, ao mesmo tempo em que demonstra não ter domínio acerca da dimensão do desequilíbrio energético planetário associado ao excedente de CO2 e demais gases de efeito estufa. Ainda assim, sua palavra final é de cautela ("o Sol nos concederá algum tempo para pararmos as emissões de carbono"), o que é reforçado pelo site. O que demonstraremos, porém, é que é quase certo que mesmo essa postura "cautelosa" é insuficiente...

O que variações na atividade solar podem provocar no clima e como isso se compara com outros agentes?

Acredito que as pessoas estejam sendo sistematicamente induzidas ao erro quando se fala de uma "atividade solar 60% menor". Isto não tem nada a ver com a ideia de que a quantidade de energia solar que atinja a Terra possa ser reduzida dessa quantidade, mas com outros parâmetros.

A chamada "atividade solar" se refere a processos de variação no vento solar, na quantidade de partículas emitidas pelo sol a partir da ejeção de massa coronal, erupções solares, etc. Tais variações na atividade solar são facilmente detectadas a partir da maior ou menor incidência de manchas solares.

É bem conhecida a existência de um ciclo de aproximadamente 11 anos na quantidade dessas manchas, que se formam em maior ou menor quantidade, oscilando de quase zero em períodos de mínima atividade a mais de 100 em períodos de máximo. Neste processo, a quantidade de manchas e erupções solares se correlaciona com pequenas variações na irradiância solar total (TSI, da sigla em inglês), como se vê na figura ao lado. Picos de irradiância (linha vermelha) acompanham muito bem a contagem de manchas solares (em azul) e o índice solar. Mas não podemos nos deixar enganar quanto à amplitude desse fenômeno. Se olharmos com atenção o gráfico, veremos que num mínimo de atividade solar a quantidade de energia que chega, num ponto do topo da atmosfera terrestre diretamente voltada para o Sol, é da ordem de 1365,5 W/m2 (Watts por metro quadrado) enquanto que num máximo de atividade solar esse valor vai para 1366,5 W/m2 (isso mesmo, uma diferença de apenas cerca de 1 W/m2, isto é, aproximadamente 0,1% entre mínimo e máximo!).

Mas não para por aí... O efeito médio, na verdade, é menor ainda. Globalmente, a Terra recebe a mesma quantidade de energia solar que um disco, de mesmo raio (r), posicionado na posição da nossa órbita perpendicularmente aos raios solares. Mas a energia destes raios é distribuída por um objeto de superfície 4 vezes maior (aproximando a Terra por uma esfera, de área 4πr2). Ou seja, a diferença entre máximo e mínimo solar, em média, no topo da atmosfera terrestre, em termos de energia por unidade de área por unidade de tempo, é de 0,25 W/m2. Como cerca de 30% da radiação solar que atinge a Terra é refletida para o espaço pela atmosfera (incluindo as nuvens) e pela superfície, somente 70% dela restam disponíveis para movimentar o sistema climático. Daí, podemos estimar em apenas 0,18 W/m2 a efetiva diferença entre um mínimo e um máximo de atividade solar.

E aqui, portanto, recuperamos o conceito de forçante radiativa ou forçamento radiativo, a fim de que possamos comparar o efeito dessas oscilações solares com o de outros agentes, particularmente os gases de efeito estufa. A melhor estimativa que se tem, apresentada no 5° Relatório do IPCC é que a forçante antrópica total, em 2011, comparada ao período pré-industrial era de nada menos que +2,29W/m2, ou seja, a cada metro quadrado da Terra, acumulam-se, por segundo, 2,29 Joules de energia. E energia acumulada significa... aquecimento! A principal contribuição para esse processo advém dos gases de efeito estufa de vida longa, especialmente o CO2, com 1,68 W/m2 e o metano (diretamente e a partir de seus derivados), com 0,97 W/m2. Recuperando a informação anterior de que entre um máximo e um mínimo solar a diferença de energia que chega à Terra é de meros 0,18 W/m2, constata-se que o efeito humano total é quase 13 vezes maior do que isso e que somente o efeito do CO2 é mais de 9 vezes mais importante do que as oscilações na atividade solar sobre o clima.

Outro ponto importante é que se o Sol possui ciclos de 11 anos, ao final desse período ele retorna ao estado original, o que implica que a pequena quantidade de energia a mais que ele fornece durante um máximo é cancelada pela redução durante um mínimo, ou seja, em períodos mais longos, incluindo vários ciclos, a tendência é que o papel das variações na atividade solar seja praticamente... nenhum! E daí, também na figura da forçante radiativa, verifica-se outra informação importante: que de fato de 1750 para cá, a contribuição do Sol para mudanças no clima foi de meros 0,05 W/m2, algo quase 46 vezes menor do que o efeito antrópico! Detalhe: já havíamos abordado isto em texto anterior em nosso blog.

O que foram o Mínimo de Maunder e a "Pequena Era do Gelo"?

Se mínimos e máximos de atividade solar continuarem se alternando, o que acontece? Seus efeitos se cancelam, é óbvio. O pequeno freio ao aquecimento global que seria imposto durante os mínimos seria compensado por uma aceleração (somando o pequeno efeito natural ao efeito antrópico dominante) durante os máximos. É o que concluímos facilmente.

Mas se o Sol entrar num período prolongado de baixa atividade solar? O que aconteceria?

Ora, isso já aconteceu antes. E não foi somente uma vez, mas várias. Nos últimos seis séculos, pelo menos 3 mínimos prolongados significativos foram verificados: os chamados Mínimos de Dalton, de Maunder (conhecido desde o trabalho de John Eddy, de 1976) e de Spörer.

Ora, mesmo considerando o mínimo de atividade solar mais importante em todo esse período (o mínimo de Spörer, de 1456), a diferença entre a irradiância média (média móvel de 5 dias) é muito pequena. Os dados de Delaygue e Bard, publicados em seu artigo "An Antarctic view of Beryllium-10 and solar activity for the past millennium" publicado em 2010,disponíveis por ftp, mostram que o menor valor em períodos de 5 anos da TSI está apenas 1,2 W/m2 abaixo do valor máximo. E aí, fazendo as contas novamente (dividindo por 4, para distribuir pela superfície da Terra toda e descontando os 30% do albedo), chegamos a 0,21 W/m2. Ou seja, a influência no clima do mínimo solar mais importante dos últimos 1300 anos foi menos de um décimo do efeito humano atual e 8 vezes menor do que a influência somente do excesso de CO2 em relação ao período pré-industrial.

Por isso, concordamos com Gavin Schmitt, diretor do NASA-GISS (Instituto Goddard de Estudos Espaciais), quando afirma, ao se referir ao papel ridículo da mídia como "uma sujeira total". Ainda nas palavras dele, o trabalho de Zarkhova "não é ruim, mas é como se as pessoas estivessem preocupadas com o preço do cafezinho quando não conseguem sequer pagar a prestação da casa onde moram".

Parte da confusão na mídia parece se alimentar do grave erro que é colocar um sinal de igualdade entre a "Pequena Era do Gelo" (LIA, do inglês "little ice age") e o Mínimo solar de Maunder e também achamos que é preciso "limpar o meio de campo" com respeito a esse engano.

Na ausência de fatores antrópicos significativos, é possível que mínimos prolongados de atividade solar possam ter cumprido um papel importante no clima, mas mesmo assim seria um grave erro atribuir a LIA exclusivamente ao Mínimo de Maunder. Há vários indícios de que, na realidade, além do papel dos mínimos solares sucessivos (a começar pelo de Spörer), um vulcanismo mais intenso e até uma redução nas emissões humanas no período (associada a uma redução na população europeia e nas Américas) tenham coincidido para favorecer um período mais frio. Por fim, é importante alertar para o fato de que a chamada "Pequena Era do Gelo" provavelmente tenha tido um caráter mais regional do que propriamente global. Nas palavras do Prof. Michael E. Mann, "Embora haja evidências de que muitas outras regiões fora da Europa tenham tido períodos de condições mais frias, com glaciação expandida, e mudanças significativas nas condições climáticas, o momento e a natureza dessas variações são altamente variáveis de região para região, daí a noção de Pequena Idade do Gelo pequena como um período de frio globalmente sincronizado tem sido descartada" e, ao invés disso, "a Pequena Era do Gelo deve ser considerada como um período de resfriamento modesto no Hemisfério Norte, com temperaturas caindo em cerca de 0,6°C durante os séculos XV a XIX.

Acontece que hoje, diferente desse período, os fatores antrópicos são mais do que significativos; são dominantes se comparados com qualquer forçante radiativa natural possível na escala das décadas vindouras. É por isso que toda a bizarrice de cenas do Tâmisa congelado, de nevascas imensas e referências à LIA é aberrantemente fraudulenta! Mesmo se a forçante radiativa antrópica permanecesse constante e igual a +2,29 W/m2 (ela tem crescido a 0,26 W/m2 por década!), se tivéssemos um "abatimento" de -0,21 W/m2, continuaríamos, com 2,08 W/m2 a impulsionar o aquecimento global! E se seguirmos no ritmo atual de acumulação de CO2 na atmosfera, de 2 ppm por ano, mesmo com esse mínimo solar, abriríamos os anos 2030 com uma forçante radiativa de +2,60 W/m2, ou seja, com uma taxa de acumulação de calor no sistema terrestre maior do que a dos dias de hoje. É o cúmulo do auto-engano achar que uma gota d'água pode apagar um incêndio!

Que tal examinar diretamente a literatura científica sobre o assunto e checar o conjunto das evidências? 

Além da pesquisa que está sendo realizada pelo grupo da Professora Valentina Zharkova (que virou celebridade, infelizmente, mais pelo tumulto promovido pela mídia do que pelo trabalho científico em si), muitos outros também vêm examinando o fenômeno há tempos. Em particular, qual seria a possibilidade de que um mínimo como esse promovesse um resfriamento do planeta, ainda que modesto ou, pelo menos, que compensasse em parte o efeito do aquecimento global?

Do que pude levantar, Feulner e Rahmstorf (2010), em artigo publicado na Geophysical Research Letters, foram os primeiros a encontrar respostas a essa questão, ainda trabalhando com os cenários utilizados até o 4° relatório do IPCC. Eles usaram modelos climáticos forçados tanto pelo aumento dos gases de efeito estufa projetado para os cenários A1B e A2, mas com comportamento diferente para o Sol, mantendo o ciclo solar atual ou substituindo-o por um mínimo de atividade que se prolonga até o fim do século, incluindo um cenário com redução na intensidade da irradiância solar similar à estimada para o Mínimo de Maunder. 

m suas conclusões, Feulner e Rahmstorf (2010) dizem que "a evolução da temperatura média global até o ano 2100 mostra apenas uma pequena diminuição da temperatura para um 'grand minimum' de atividade solar, comparado aos cenários-padrão" (da ordem de apenas 0,1°C) e que "considerando todas as incertezas na reconstrução de temperatura, forçantes e física do modelo, a incerteza geral no máximo pode ser triplicada, ou seja, não seria maior do que 0,3°C. Comparando este valor com o aquecimento esperado entre 3,7°C e 4,5°C  em relação a 1961-1990 até o final do século para os cenários A1B e A2 respectivamente, um novo mínimo de atividade solar como o de Maunder, não seria capaz de compensar o aquecimento global causado pelas emissões antrópicas de gases de efeito estufa. Além do mais, qualquer compensação do aquecimento global devido a um 'grand minimum' de atividade solar teria um efeito meramente temporário, já que os mínimos solares durante o último milênio perduraram somente por algumas décadas ou no máximo por um século".

O resultado apresentado pelos autores não é de modo algum surpreendente. No painel inferior da figura mostrada acima, temos as forçantes, em W/m2, associadas aos efeitos antrópicos, vulcanismo e solar (neste caso, a linha verde contínua representa a continuidade do ciclo de 11 anos, a linha tracejada a supressão dos máximos de atividade solar e a linha pontilhada, essa supressão de máximos acrescida de uma redução geral da irradiância solar). Como a forçante antrópica é amplamente dominante, a consequência é vista no painel de cima: a temperatura sobe em todos os cenários, por conta do excesso de gases de efeito estufa, e o efeito do 'grand minimum' é quase imperceptível.

Mais recentemente, outro artigo, de Ineson e colaboradores, foi publicado na Revista Nature, e desta vez são utilizados os cenários mais novos utilizados pelo CMIP, projeto que subsidia os relatórios do IPCC (os novos cenários são chamados RCPs e o número em cada um é exatamente o valor da forçante radiativa ao final do século). Além disso, o time de autores foca nas consequências sobre o Hemisfério Norte, onde - pelo que indicam as evidências do passado - os impactos do Mínimo de Maunder foram maiores.

Resumindo, o artigo, intitulado "Regional climate impacts of a possible future grand solar minimum" diz que as chances de ocorrer um mínimo de atividade solar prolongado como o mínimo de Maunder são de 15 a 20%, mas que mesmo nesse cenário, a mudança na irradiância solar total seria pouco maior do que 0,1%. Das simulações com e sem o "grand minimum", concluem que o efeito de resfriamento global que esse mínimo solar prolongado pode trazer seria da ordem de 0,13°C, extremamente inferior às projeções de aumento de temperatura mesmo num cenário com mitigação como o RCP4.5 e afirmam que o efeito desse mínimo solar seria o de compensar por somente 2 anos da tendência de aquecimento global num cenário sem mitigação! Em concordância com o trabalho de Feulner e Rahmstorf (2010), Ineson et al. (2015) mostram que os impactos do "grand minimum" seriam mais restritos às latitudes médias e altas do Hemisfério Norte, mas que mesmo aquelas regiões ficarão provavelmente 6°C (com consequências devastadoras) mesmo com um mínimo solar que perdure até o fim do século se nenhuma medida de mitigação for tomada.

Sobre o artigo de Ineson et al., por sinal, nem precisaríamos ir muito longe. Logo na primeira frase do resumo, ele afirma, nítido, cristalino: "Qualquer redução na média global de temperatura próximo à superfície provavelmente será uma pequena fração do aquecimento antrópico".

A quem serve tamanha distorção?

Se o nosso conhecimento científico sobre clima nos oferece ferramentas para entender tão claramente que as mudanças na atividade solar seria apenas um grão de areia subtraído da duna do aquecimento global antrópico, se as cientistas envolvidas em pesquisas científicas mostram ou que seu trabalho não fala nada sobre "mini-era do gelo" (caso de Valentina Zharkova) ou dizem justamente o contrário, que o planeta continuará perigosamente a aquecer se não houver cortes decisivos nas emissões de gases de efeito estufa (caso de Sarah Ineson), como se chegou ao ponto de um boato sem sentido ganhar o status de "última descoberta científica"?

Claro, há a questão da ignorância e da incompetência. É lamentável o que muitos jornalistas têm feito em relação a matérias sobre ciência, reproduzindo mentiras, dando igual peso à ciência de verdade e a pseudo-ciências (como o negacionismo climático) sob o argumento de "ouvir os dois lados", em geral sem checar fontes e, na maior parte dos casos, não distinguindo sequer fontes confiáveis (no extremo, revistas científicas com revisão por pares de maior prestígio, como Science e Nature) do lixo que sai num Daily Mail da vida, blogs e sites mentirosos ou sensacionalistas, etc.

Por falar nisso, há a má fé de, como apontamos no início, usar do sensacionalismo para vender jornais, revistas e conquistar atenção audiência em meio a esse enorme ruído da internet. Nos veículos virtuais, a quantidade de "likes", compartilhamentos e comentários nas matérias da pretensa "mini-era do gelo" foram bastante numerosos.

E há, claro, a intenção fundamental de quem plantou a notícia. E não podemos ser ingênuos em relação à origem de toda a distorção e manipulação. A mídia conservadora esculhambada  provavelmente não publicou mentira tão escandalosa inocentemente. Afinal, mesmo diante do risco de - esperamos que isso aconteça - a lorota da "mini era do gelo" seja desmoralizada, eles não têm mesmo nenhuma reputação a defender. No caso da mídia conservadora que finge ser séria, como o Telegraph e - porque não dizer, o Globo - há um cálculo, pois a perda de um público leitor minimamente esclarecido pode ser o efeito colateral de publicar qualquer sandice que apareça pela frente.

Da minha parte, não posso crer que tenha sido coincidência o aparecimento dessa fraude. Estamos às vésperas da COP21 em Paris e a indústria de combustíveis fósseis está na defensiva. Há um ano, uma marcha de quase 400 mil pessoasganhou as ruas de Nova Iorque e a resistência de povos originários, ambientalistas, jovens, povos de países insulares etc. tem pululado em todo canto do mundo. Algumas companhias cinicamente haviam já enviado uma cartadirigida a Christiana Figueres, Secretária-Executiva da Convenção-Quadro da ONU para as Mudanças Climáticas (UNFCCC), admitindo até a possibilidade de um "preço sobre carbono", o que indica que algumas das corporações estão começando a tentar uma saída mediada (que sabemos ser totalmente insuficiente) para a crise climática. Mais tarde, oG7 sinalizou com a necessidade de manter o aquecimento global limitado a 2°C e, em que pese o fato de que as contribuições voluntárias desses países - como a da maioria - são tímidas e muito aquém do necessário, admitir essa realidade é por si só um duro golpe na tática do negacionismo, que por muitos anos foi aquela preferencialmente adotada pela indústria de combustíveis fósseis. Após seu lançamento, a Encíclica Papal "Laudato Sí" está apenas começando a ter repercussão e o potencial de que ela influencie o debate climático, especialmente em países de maioria católica, é bastante grande. Depois, foram a Revista Science, através deeditorial, e cientistas ganhadores do Prêmio Nobel que se manifestaram. E há poucos dias, aUnion of Concerned Scientists, organização não-governamental que herda a postura de grandes cientistas comprometidos com causas sociais, ambientais e humanitárias como Carl Sagan, publicou um dossiê sobre as mentiras e conspirações que a indústria de combustíveis fósseis vem fazendo há mais de 3 décadas (com destaque para os casos da Exxon - que sabia desde 1981 do risco climático - e do Instituto Americano de Petróleo - que conspirou para fazer o Protocolo de Kyoto fracassar).

Em tempo: Últimos desdobramentos

Já em vias de publicar este artigo - bastante grande, reconheço, duas publicações novas apareceram: uma no portal do Globo, outra no site da (com o perdão da palavra) Veja.

Apesar de não ter se retratado enquanto veículo, o Globo (cujo grupo também controla a Revista Galileu) deve estar tentando evitar a desmoralização. Além da emenda (tímida) na matéria online da Galileu, é importante que César Baima, do blog "Só Ciência", ligado ao Globo, reconheça o absurdo que foi o órgão ao qual ele se vincula ter "embarcado" na balela (termo que ele mesmo usa, corretamente), mas imagino que ele não possa desenvolver devidamente a crítica, pois isso o levaria a bater de frente com colegas e, possivelmente, com o próprio grupo de comunicação da família Marinho.

Já a Veja, através de um de seus colunistas mais tacanhos, Rodrigo Constantino, veio continuar o desfile de sandices e, com o possível recuo do Globo, deve virar a vedete da nova lorota negacionista na mídia brasileira.

Do ponto de vista científico, o caso está encerrado, é óbvio. Ou melhor, na verdade nunca existiu "caso" nenhum, pois o que se viu foi uma lorota plantada - muito provavelmente de forma deliberada - na mídia ultra-conservadora britânica e reproduzida ad nauseum em sites, blogs, jornais e revistas sem compromisso real com a verdade científica mundo afora. Mas é preciso que tentemos compensar pelo estrago que foi feito junto à opinião pública, difundindo a informação científica correta e rigorosa, como apresentamos neste texto. Ao mesmo tempo, é preciso estar mais preparado/a, pois até dezembro, não se sabe que tipo de ardil o negacionismo ainda vai tentar plantar.

Ainda há mais desdobramentos, como esperado...

1. Mantive contato com o meu colega Tércio Ambrizzi, que liderou, ao lado do Moacyr Araújo (nosso "Moa") a organização do volume do Grupo de Trabalho I do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e por quem tenho uma relação de apreço, admiração e amizade. E como suspeitei, a gravação do vídeo foi feita de surpresa, sem a possibilidade de preparação (com o detalhe... Tércio está... de férias...). Fica a nossa saudação ao Tércio e o desejo que ele desfrute da folga merecida.

2. Apareceu um negacionista comentando o link para este artigo lá na nossa página do Facebook. Ele enviou o link de um artigo que seria, na opinião dele, o supra-sumo da refutação do que escrevi. Fiquei impressionado com o baixíssimo nível de apropriação de conceitos básicos da ciência, especialmente da Física, no referido material. As pérolas que aparecem são do naipe de "os gases não são absorvedores nem irradiadores de ondas longas, mas sim absorvedores e irradiadores de fótons". Como se (assim como toda e qualquer radiação eletromagnética) a radiação de ondas longas, isto é, o infravermelho, não fosse constituída... de fótons! Ou então, "o que ocorre é o superávit de energia na Terra, mas esse superávit não se traduz necessariamente em energia térmica capaz de aquecer o planeta", deixando claro que o sujeito ou pretende violar a 1ª Lei da Termodinâmica (a da Conservação da Energia) ou a 2ª Lei (que impõe restrições a transformação de energia térmica em outras formas de energia, como trabalho mecânico)... ou as duas... Ou ainda, "O planeta Terra esta inserido no universo que é infinitamente grande, juntamente com astros de proporções colossais, portanto, existem interações ocorrendo entre eles que também podem afetar o clima", sem dizer de que natureza é essa interação, se gravitacional, eletromagnética (sabidamente muito pequenas), apelando para um argumento místico que mais lembra astrologia do que ciência...

Fonte: O que você faria se soubesse o que eu sei?

Unicast